Por Marcio Antonio Campos
Quem acompanha o blog sabe como funciona a fake history
sobre ciência e fé. É como as fake news, mas distorcendo fatos do passado para
criar um antagonismo entre ciência e fé. É assim que lemos em reportagens ou
livros didáticos que Galileu foi torturado ou morto pela Inquisição; que os
cristãos medievais achavam que a Terra era plana; que Giordano Bruno foi
queimado vivo por suas teorias científicas; que a Igreja Católica proibia a
dissecação de corpos; que houve papas que proibiram a vacinação; e tantos outros
casos que colocam religião e ciência em campos opostos. O historiador
australiano Peter Harrison, da Universidade de Queensland, vem se dedicando a
derrubar não apenas a “história falsa”, mas a própria noção de que existe um
conflito inevitável entre religião e ciência. Harrison conversou com o Tubo de
Ensaio durante o congresso de que participei na Universidade de Birmingham
(Reino Unido), e falou sobre a persistência da fake history entre a opinião
pública, o mito da incompatibilidade entre ciência e fé, e sobre seu livro Os
territórios da ciência e da religião, lançado no Brasil em 2017.
Ainda
hoje continuamos a ver relatos completamente distorcidos sobre alguns
episódios, como os de Galileu ou de Giordano Bruno. Temos falado muito de fake
news ultimamente; na sua opinião, há um problema de fake history quando o
assunto é ciência e religião?
Sim, é uma boa forma de descrever o problema. Temos mesmo
um tipo de fake history da relação entre ciência e fé, e essa fake history
alega que, ao longo da história, ciência e fé sempre estiveram em conflito, do
qual o caso de Galileu é sempre usado como exemplo. Mas o que historiadores têm
mostrado nos últimos 30 anos é que, na verdade, existem algumas ocasiões de
conflito, bem isoladas. Há no mínimo o mesmo número, quando não até mais, de
situações em que ciência e religião tiveram um relacionamento positivo e forte.
A religião foi importante para fazer a ciência decolar. O fato é que, na
maioria das vezes, ciência e fé não têm muito a ver uma com a outra. Veja bem,
no caso específico de Galileu, por exemplo, é fato que ele foi processado pela
Inquisição. Mas, olhando com cuidado esse episódio, não é tanto uma questão de
“ciência versus religião”, mas divergências dentro da comunidade científica,
nos quais a Igreja Católica tomou partido, e conflitos dentro da religião, por
exemplo sobre como interpretar a Bíblia. Então, a verdade histórica é muito
mais complicada que esse mito frequentemente espalhado sobre uma batalha
permanente entre ciência e religião ao longo da história.
Seu
livro Os territórios da ciência e da religião vai nesta linha, de mostrar que a
história real não é tão simples.
Exato. Temos essa lenda segundo a qual os gregos eram
pioneiros da ciência, e então o cristianismo medieval acabou com tudo em nome
da fé, e só com a Revolução Científica esse patrimônio foi recuperado. Mas isso
não é apenas simplista e falso, é um desconhecimento de como os antigos
entendiam “ciência” e “religião”. É verdade que o que definimos como “atividade
científica” floresceu na Grécia, decaiu no começo da Idade Média e teve uma
recuperação a partir do século 12, e especialmente a partir do século 17. Mas,
se olharmos o papel da religião nisso tudo, é um papel muito positivo,
inclusive na Revolução Científica. Eu diria até que, se não fosse graças a
suposições, motivações e valores religiosos, a ciência não teria se
desenvolvido da forma como se desenvolveu no Ocidente. Essa é uma parte da
história; a outra parte é que existe uma noção moderna do que seja “ciência” e
do que seja “religião”, mas no passado as pessoas não tinham esse mesmo
entendimento. Veja os termos que se usava antigamente para o estudo da
natureza: não se falava em “ciência”, mas em “filosofia natural”, “história
natural”. Temos de ser muito cuidadosos quando olhamos para o passado e
projetamos definições modernas de “ciência” e “religião” para descrever o que
se fazia naquela época, coisas que nós chamaríamos assim ou assado, mas que as
pessoas da época entenderiam de forma bem diferente.
Hoje
nós vemos “ciência” e “religião” como corpos de conhecimento, mas antigamente
não era assim.
Nós costumamos pensar em “religião” como um conjunto de
crenças e práticas, e “ciência” como um outro conjunto de crenças e práticas; e
as crenças da religião se chocam com as crenças da ciência. Mas essa ideia de
“religião” – ou melhor, “religiões” – como algo formado por dogmas e preceitos
morais é muito moderna. Ela não existe antes do século 17. E, claro, se entendemos
ciência e religião como conjuntos de afirmações sobre o mundo natural, parece
evidente que elas estarão competindo entre si. Mas, se compreendermos que as
pessoas antigamente não viam nem a ciência, nem a religião desta forma, vamos
perceber que o conflito é impossível, porque ninguém estava definindo ciência e
religião como nós fazemos hoje. Vejamos o caso da religião. Religio, em latim,
era entendido como uma virtude, uma disposição interna. Hoje nós não temos essa
leitura. Para nós, religião é algo externalizado: são as crenças que temos e
expomos publicamente, a maneira como nos comportamos de acordo com nossa fé, as
cerimônias que realizamos.
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Segundo Peter Harrison, os relatos falsos podem ser
desmentidos, mas o mito da inimizade entre ciência e religião é bem mais
difícil de derrubar.
Foto: Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo
Foto: Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo
E
quando ocorreu essa mudança?
É uma história bem complicada, mas podemos ressaltar alguns
pontos. Primeiro, nos séculos 16 e 17 a própria noção de “virtude” passa por
uma redefinição. E, como consequência da Reforma protestante, a religião, ou as
religiões, passam a ser descritas de maneiras bem específicas. Após as guerras
de religião, os vários tratados de paz dão suas próprias definições de religião
e dividem a Europa de acordo com a fé, que passa a ser entendida legalmente
como o conjunto de crenças e práticas que definem, por exemplo, o catolicismo,
o luteranismo ou o calvinismo. Então, esse pano de fundo histórico leva a um
conceito de religião que exige uma externalização, que por sua vez gera os
efeitos legais. São dois exemplos de como se deu esse processo.
Se os
historiadores já estão derrubando as histórias falsas, se ninguém mais na
academia dá crédito a elas, por que elas continuam tão fortes na opinião
pública?
Há uma série de motivos para isso. Primeiro, ainda existem
vários intelectuais que também são personalidades públicas e que continuam
espalhando a fake history. No mundo de língua inglesa, um exemplo óbvio de
pessoa que segue propagando e reforçando os relatos falsos é Richard Dawkins.
Além disso, as pessoas gostam de histórias com heróis e vilões. E aí temos
Galileu, ou Giordano Bruno, enfrentando as forças da ignorância e das trevas; isso
tem apelo, mesmo que seja falso. As histórias de conflito são muito mais
atraentes que a verdade histórica, mais intrincada, cheia de nuances. Por fim,
é preciso ressaltar que muitas vezes a fake history vem à tona quando aparecem
situações modernas de antagonismo entre ciência e fé, como é o caso do
criacionismo antievolucionista. Diante de um exemplo desses, as pessoas
extrapolam e dizem “vejam só, este é apenas o exemplo mais recente do que é, na
verdade, uma longa história de conflito”.
E
podemos ter a esperança de um dia acabar de vez com a fake history?
Espero que sim, mas isso depende de uma divulgação muito
maior do bom trabalho que os historiadores têm feito ao derrubar essa
mitologia. A imprensa é fundamental nisso. Recentemente, aqui no Reino Unido, a
rádio BBC4 veiculou uma série incrível, chamada The secret history of science
and religion, entrevistando historiadores que têm ajudado a derrubar esse mito
do conflito entre ciência e fé. Precisamos de mais coisas desse tipo.
Para
além da fake history pura e simples, que são os relatos falsos sobre episódios
históricos, há também um fenômeno mais profundo, que é a tese do conflito
inerente entre ciência e fé, defendida com bases filosóficas, ou apoiada em
certas compreensões sobre os limites da ciência e da religião. De onde ela vem?
Essa visão mais abstrata, teórica, do suposto conflito tem
uma explicação na convicção de que as crenças religiosas não têm fundamento
algum, estão baseadas em afirmações falsas sobre o mundo, enquanto a ciência
nos conta a verdadeira história a respeito da natureza. Mas é um erro pensar
que a ciência e a religião estão competindo pelo mesmo “terreno explanatório”.
No fundo, o que alimenta a tese do conflito é uma visão falsa a respeito da
essência da religião, e uma visão também falsa sobre o que é a ciência. Se você
permanece com essas visões errôneas a respeito de ambas, então realmente vai
parecer que a guerra é inevitável.
Mesmo
no ambiente acadêmico, há quem rejeite a fake history, que saiba que as
histórias que se conta por aí são mentirosas, mas defenda completamente a tese
do conflito. Como isso é possível?
Isso acontece porque o mito do conflito está ligado a uma
história maior a respeito da modernidade no Ocidente. Gostamos de pensar que
nós, ocidentais modernos, nos tornamos seres racionais, esclarecidos, que
deixamos para trás nosso passado irracional e religioso. Essa narrativa é o
pano de fundo para toda essa discussão. E, quando nos apegamos a esse relato
sobre o progresso, entendido como uma caminhada em direção a um esclarecimento
racional que não é compatível com visões religiosas, a história do conflito
sempre parecerá muito plausível.
E é
possível derrubar esse mito do conflito, que é uma ideia mais elaborada?
Eu não acho que sejamos capazes de fazer isso. É um mito
poderoso demais, e uma característica dos mitos é que eles resistem à
falseabilidade por meio dos fatos. Não é algo que se possa desfazer facilmente;
não adianta simplesmente pegar quem defenda essa ideia e mostrar-lhe os fatos,
porque os mitos têm o poder de motivar as pessoas, e este mito, em específico,
para muitas pessoas é parte fundamental daquilo que as define como indivíduos
seculares, modernos e racionais.
Marcio Antonio Campos é jornalista e está na Gazeta do Povo
desde 2004. Já trabalhou nas editorias de Paraná, Vestibular, Vida e Cidadania,
e Economia; atualmente é editor de Opinião. Trouxe de casa o interesse tanto
pela ciência quanto pela religião, e é coautor de Bíblia e natureza: os dois
livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé.
Fonte: Gazeta do Povo
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