por Tiago Cordeiro, especial para o Gazeta do Povo
Moradora de Riolândia, no interior de São Paulo, Vitória
Graciano Ramos chegava em casa com a família, de carro, na madrugada de 25 de
dezembro de 2017. Saiu para abrir o portão e sentou-se sobre o capô do veículo
enquanto um familiar manobrava. Escorregou, caiu sob as rodas e morreu.
Semanas antes, em setembro de 2017, na zona norte de Manaus
(AM), Fabíola Oliveira Menezes morreu trocando tiros com a polícia. Ela tinha
histórico de tráfico de drogas e foi encurralada pela polícia depois de roubar
um carro. Durante a fuga, o veículo capotou e caiu num barranco. A polícia
conseguiu prender os dois cúmplices, Tais Esmeralda Machado Vieira e Felipe de
Lima Galdino (que, aos 18 anos, já tinha oito passagens pela polícia).
Já Micaela Ferreira Avelino foi vítima de um assalto, em
julho de 2017. Dona de uma barbearia em Natal (RJ), ela havia mudado o endereço
de seu comércio para dentro de um shopping, em busca de segurança. No segundo
dia de funcionamento no novo local, a barbearia foi tomada por ladrões que
haviam tentado assaltar um carro forte. Um dos criminosos fez Micaela de refém,
e ela acabou atingida na cabeça por uma bala disparada por um segurança do
estabelecimento.
Em maio, também de 2017, na cidade mineira de Contagem,
Kathleen Viana de Paula, de 19 anos, discutia com outra mulher, sua namorada,
quando foi empurrada por ela. Bateu a cabeça no chão e morreu na hora.
O que esses quatro casos têm em comum? As pessoas que
morreram eram mulheres, e lésbicas. Por isso, foram incluídas em listas de
vítimas de violência motivada por homofobia. Produzidos por diferentes
organizações não-governamentais, e também por um grupo de pesquisadoras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esses relatórios são
considerados como fonte primária de informação, tanto para o governo brasileiro
como para, por exemplo, a Organização das Nações Unidas e a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.

Cenário violento
Invariavelmente, esses levantamentos apresentam dados
alarmantes. Segundo o Grupo Gay da Bahia, em 2018 morreram de morte violenta
(incluindo suicídio) 420 LGBTs; em 2017 haviam sido 445 vítimas e, em 2016,
343. Produzido há 39 anos ininterruptos, o relatório identificou, no ano
2000, 130 mortes; em 2010, haviam sido 260.
Segundo a Associação Nacional dos Travestis e Homossexuais
(Antra), em 2017 foram assassinatos 179 pessoas trans, com suspeitos presos
em apenas 18 dos casos. Já de acordo com a organização não governamental
International Trangender Europe (TGEU), que monitora casos em todo o mundo,
entre 2008 e 2016 ocorreram, no Brasil, pelo menos 868 homicídios de
pessoas trans.
Além disso, o levantamento produzido dentro da UFRJ,
chamado Lesbocídio e produzido por Maria Clara Dias, Suane Felipe Soares e
Milena Cristina Carneiro Peres, aponta que, entre 2014 e 2017, foram vítimas de
morte violenta, incluindo suicídios, 126 mulheres lésbicas no Brasil. Somados,
esses relatórios sustentam as afirmações, muito repetidas, de que o Brasil é o
país que mais mata homossexuais e transexuais no planeta.
Acontece que, no momento em que se olha com atenção para
cada um dos casos citados, é possível perceber que, muitas vezes, não é
possível afirmar com segurança que são todos episódios provocados por
preconceito. O biólogo de formação Daniel Barbosa Reynaldo, funcionário da
prefeitura do Rio de Janeiro, resolveu fazer essa checagem, caso a caso, em
especial no levantamento da UFRJ. O que ele descobriu é que o percentual de
casos comprovadamente resultantes de violência motivada por homofobia é
espantosamente baixo.
Critérios confusos
“As três pesquisadoras fizeram uma seleção aleatória de
mulheres lésbicas que morreram pelos mais diversos motivos, incluindo acidente,
suicídio, bala perdida, criminosa trocando bala com a polícia, e simplesmente
chamaram aquilo de morte motivada pela homofobia”, ele afirma. “Existem casos
pontuais de violência contra homossexuais, mas eles são muito inferiores ao que
é divulgado por esses grupos. Esses dados só são obtidos através de uma
manipulação intensa e grosseira dos dados, incluindo um número de mortes que
não tem indícios que permitam concluir que houve homofobia”.
Em novembro de 2017, Daniel Barbosa criou a página Quem
a homotransfobia não matou hoje?, uma referência irônica ao site do Grupo Gay
da Bahia, Quem a homotransfobia matou hoje?. “Meu interesse é focado em
estatísticas relacionadas a minorias, procuro discutir os dados apresentados”,
afirma. Para o biólogo, de todos os 126 incidentes listados pelo Lesbocídio,
apenas dois são claramente crimes motivados por preconceito.
Leia mais: 4 razões por que ainda há tanta rejeição aos
movimentos feminista, negro e LGBT
O geneticista Eli Vieira realizou uma checagem semelhante
para os dados do Grupo Gay da Bahia, que produz seu relatório anual há 39 anos.
Chegou a uma primeira conclusão, ainda parcial, que, dos casos apontados pelo
grupo como homicídio motivado por homofobia em 2017, apenas 6% têm,
comprovadamente, essas características e 42% não têm, de forma alguma,
motivação homofóbica. “Resolvi iniciar uma checagem completa de dados
referentes ao ano 2016, motivado pelo trabalho pioneiro do Daniel Reynaldo, e
também sensibilizado pelas agressões que ele sofreu ao fazer o trabalho salutar
de crítica, o que deveria ser normal na universidade”, afirma Eli Vieira,
fazendo referência ao fato de que as pesquisadoras da UFRJ processaram Daniel
Barbosa por danos morais.
“Não há nenhum segredo na checagem do trabalho do Grupo Gay
da Bahia”, diz Eli Vieira. “As estatísticas geradas pelo GGB e citadas pela
imprensa são nada mais que clippings de notícias acompanhados de operações
aritméticas: somam os casos noticiados que coletaram em um ano e levam os
números de volta à imprensa, sem passar por qualquer revisão independente, e a
maior parte da imprensa não manifesta nenhuma curiosidade jornalística a
respeito dos métodos”, ele critica. “Nenhuma dessas afirmações tem o mínimo
rigor científico. São tiros no escuro”.
Fontes discutíveis
No caso da UFRJ, na medida em que Daniel Barbosa começou a
publicar em seu blog insistentes críticas aos métodos das pesquisadoras Maria
Clara Dias, Suane Felipe Soares e Milena Cristina Carneiro Peres, elas reagiram
alegando perseguição. “Tenho sido vítima de acusações em redes sociais e
denúncias, endereçados a diversos órgãos públicos, tais como a Ouvidoria e
Reitoria da UFRJ, MPF, CGU, CAPES e CNPq, por conta de uma pesquisa que lidero
sobre o assassinato de mulheres lésbicas no Brasil”, afirmou, em nota
pública, a professora Maria Clara Dias, que é graduada em psicologia, doutora
em filosofia, com pós-doutorado nas universidades de Connecticut, Oxford e
Tulane. Dentro da UFRJ, além de professora, ela coordena o Núcleo de Ética
Aplicada (NEA) e o Núcleo de Inclusão (NIS).
“Tenho sido alvo de perseguições sistemáticas, que envolvem
acusações de fraude e insinuações mentirosas sobre o mau uso do dinheiro
público”, ela prossegue. “Minha foto, assim como a das demais autoras do
Dossiê, encontram-se, desde então estampadas como pano de fundo em um blog que
profere um discurso de ódio e busca, de forma nada acadêmica, coibir a defesa
dos direitos básicos de grupos heterodiscordantes”. Procuradas pela reportagem,
as pesquisadoras não retornaram aos pedidos de entrevista.
Daniel Barbosa afirma que, de fato, enviou e-mails aos
órgãos públicos que subsidiam o trabalho das pesquisadoras. “O que elas estão
chamando de serem perseguidas e ameaçadas? O que eu fiz foi enviar denúncias em
relação à atividade delas, que recebem verba pública, para conduzir essas
pesquisas”. O blogueiro foi condenado em primeira instância, principalmente por
utilizar as fotos das pesquisadoras em sua página, e recorreu. Por outro lado,
conseguiu da Controladoria Geral da União uma ordem, ainda não cumprida,
determinando que as pesquisadoras divulguem os detalhes dos casos que sustentam
suas pesquisas.
“Seria muito fácil para elas derrubar meus argumentos.
Bastaria apresentar dados que comprovem que esses casos têm relação com
homofobia. Até agora elas não fizeram isso”, afirma o blogueiro. “O uso destes
números como justificativa para formar políticas públicas (verbas, cargos e,
sobretudo, legislações) é meu maior incômodo”.
A Antra também foi procurada pela reportagem e não se
manifestou. Mas, em seu relatório mais recente, a entidade explica a
metodologia utilizada para produzir seu relatório: “O levantamento é feito a
partir de pesquisa dos dados em matérias de jornais e mídias vinculadas na
internet. De forma manual, individual e diária”.
O relatório Lesbocídio também apresenta sua
metodologia. “Trata-se de uma pesquisa empírica realizada em seis etapas:
busca, análise dos dados coletados, validação dos dados, catalogação,
monitoramento e divulgação. As fontes dos dados foram obtidas essencialmente a
partir do monitoramento de redes sociais, sites, jornais eletrônicos e outros
meios de comunicação que fossem expressões de notícias criminais nacionais,
regionais e locais, buscando a identificação dos casos de lésbicas assassinadas
ou suicidadas”.
Por que suicídio? “Como a expressão do preconceito atua em
duas vias, uma social e outra pessoal, há também a experiência do preconceito
nas relações interpessoais no trabalho, na família, da escola etc.”, o
relatório explica. “Tal situação de isolamento, desamparo, desinformação e
sistemáticas reprovações e retaliações, movidas por consecutivas tentativas de
heterossexualização da lésbica, podem levar a uma condição de incapacidade de
construção de uma autoestima positiva e estável. Nestes casos é comum a
desistência da busca por enquadramento que culmina no suicídio”. Ou seja, o
suicídio é considerado consequência da violência e do preconceito impregnados
na sociedade.
“Extrema direita”
Fundador do Grupo Gay da Bahia, o professor Luiz Mott
conversou com a reportagem sobre o assunto. “Veja quem já criticou nosso
relatório: o presidente Bolsonaro, o [filósofo] Olavo de Carvalho, o
[jornalista] Reinaldo Azevedo. Só pessoas extremamente homofóbicas, de extrema
direita”. Mott, que é antropólogo, historiador e orientador do programa de
pós-graduação em história da Universidade Federal da Bahia, explica que existe
um critério para a inclusão de casos mais polêmicos – como o de Vitória Graciano
Ramos, que escorregou do capô do carro e caiu sob as rodas do veículo.
“Os críticos não consideram, por exemplo, que o índice de
alcoolismo entre lésbicas é altíssimo, muito mais alto do que entre mulheres
heterossexuais. De modo que ela é vítima do que nós chamamos de homofobia
estrutural”. Mott explica que os relatórios são, de fato, limitados.
“Nós somos os primeiros a reconhecer que nosso levantamento
é incompleto, porque não é feito por órgãos oficiais, que deveriam ter acesso
aos relatórios anuais das delegacias de polícia, dos fóruns dos estados, dos
fóruns municipais, das secretarias de segurança pública e de direitos humanos”.
O governo federal, de fato, não produz um levantamento oficial mais amplo – a
maior fonte oficial pública de dados são as denúncias enviadas por telefone
para o Disque 100, cujos dados deixaram de ser transformados em relatórios
oficiais nos últimos anos.
“É claro que há dados contraditórios, às vezes equivocados,
mas não chegam a 5%. É intolerância pegar essa meia dúzia de casos que são
problemáticos e desqualificar centenas de episódios documentados. Negar o ódio
desses crimes contra homossexuais é intolerância, é uma manifestação de
homofobia”.
Eli Vieira discorda dos critérios. “Simplesmente não é
correto presumir que toda morte de gay é homofobia por causa de uma
fantasmagórica e amorfa homofobia estrutural e sistêmica da sociedade. Parece
mais uma desculpa para botar as conclusões na frente dos dados”. “Se qualquer
pessoa que apresenta hipótese alternativa à motivação homofóbica em mortes
violentas de LGBT será acusada de homofobia, o que esses ativistas estão
fazendo não é pesquisa, é um tribunal de [Franz] Kafka [escritor checo], em que
ou você concorda com as conclusões pré-estabelecidas deles, ou é homofóbico”.
Fonte: Gazeta do Povo
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