Estamos tão acostumados a ler a Bíblia em versículos e
capítulos que nem sempre damos conta da riqueza da narrativa bíblica desde a
criação do universo e da humanidade, até o pecado humano, as ações redentoras
de Deus, o advento de Cristo e, finalmente, a nova criação. Além disso, a
riqueza e diversidade de gêneros literários, de estilos, de contextos
históricos e enfoques existenciais e teológicos dão a impressão de que a Bíblia
é uma colcha de retalhos de escritos de diversos autores, de diversas épocas, destinados
a grupos e indivíduos bem diferentes, o que dificulta perceber coesão e
harmonia entre os escritos.

Ler a Bíblia como uma narrativa é importante por dois motivos. Primeiro, ajuda-nos a compreender a literatura e mensagem bíblica. O livro de Christopher Wright A Missão de Deus – Desvendando a grande narrativa da Bíblia (2014) sugere justamente a importância de compreender a “grande narrativa” da missão na Bíblia e de perceber que a Bíblia não é só um conglomerado de escritos de diversos autores sem uma ligação com o conjunto, mas em seu todo trata da missão da igreja.
Isso não significa ler a Bíblia em ordem cronológica nem se concentrar apenas nos textos narrativos ou históricos. Antes, significa ler a Bíblia em sua forma e organização atual prestando atenção no movimento ou percurso da história bíblica e para onde ela quer nos levar. A grande narrativa desde a criação, passando pela obra redentora de Cristo, até a nova criação possibilita entender todos os escritos bíblicos, incluindo a poesia, a sabedoria e as profecias, dentro desse cenário. Essa narrativa não apenas serve como visão panorâmica, síntese ou mera estética literária para sustentar a unidade da mensagem bíblica, mas também retrata repetidamente a grandeza e compaixão de Deus e a fragilidade, egoísmo e soberba humanos, e mostra como, por meio de Cristo, o ser humano se esvazia para desfrutar da graça, do amor e da justiça de Deus e encontrar o sentido da vida.
O segundo motivo para a leitura narrativa da Bíblia é que a narrativa bíblica molda nossa identidade, experiência e percepção da realidade. Ainda que se diga que a pós-modernidade acabou com as metanarrativas, as ideologias e utopias, há novas narrativas moldando a identidade e experiência das pessoas. Sem dúvida o poder econômico, as novas tecnologias, as questões de gênero, as desigualdades sociais, as polarizações políticas e religiosas são narrativas predominantes que moldam o pensamento, as relações e as experiências das pessoas hoje. Numa perspectiva puramente pluralista pós-moderna, não há como dizer que uma ou outra narrativa esteja incorreta, seja injusta, imoral, opressora ou deplorável. Elas são apenas escolhas que indivíduos em uma sociedade livre têm o direito de fazer. Porém, elas também estão desconstruindo a narrativa bíblica de um modo a nos fazer pensar que ela é inadequada para lidar com as problemáticas contemporâneas e insustentável em uma sociedade pós-moderna.
A narrativa bíblica confronta não só o conteúdo e o valor dessas narrativas contemporâneas como também a própria narrativa da autonomia humana de sujeito absoluto de sua própria existência, escolhas e história. A narrativa bíblica mostra que o ser humano só encontra sua plena identidade no encontro com Deus por meio de Cristo, e que, ao servir a Deus, o indivíduo experimenta a verdadeira liberdade.
Portanto, ler a Bíblia como uma narrativa única implica entender o texto, a história humana e conhecer a Deus e nós mesmos. Significa encontrar não só o lugar e tema de cada livro dentro da história, mas também o lugar e temas da nossa vida dentro do plano de Deus e ouvir o que ele tem a dizer para nós hoje.
William Lane é pastor presbiteriano, doutor em Antigo Testamento e professor da Faculdade Teológica Sul-Americana, em Londrina, PR.
Fonte: Ultimato
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